Antes mesmo da primeira semana de 2015 terminar, o mundo já conhecia uma das mais importantes (e tristes) notícias que constarão nas retrospectivas do próximo dezembro. Pouco depois das 11 horas (horário de Brasília), dois homens vestidos de preto, encapuzados e armados com fuzis invadiram a redação do semanário francês Charlie Hebdo, em Paris, e mataram 12 pessoas, entre jornalistas, policiais e outros funcionários, além de ferirem gravemente mais quatro.
Os autores do crime, conforme se desenrolaram os relatos, eram extremistas muçulmanos: testemunhas da chacina afirmaram terem-nos ouvido gritar "vingamos o profeta Maomé", antes de fugirem num carro.
Fundado em 1970, o Charlie Hebdo foi o relançamento, sob novo nome, da revista Hara-Kiri Hebdo, fechada naquele ano pelas autoridades francesas, após publicar conteúdo que ironizava a morte do recém-falecido presidente Charles de Gaulle. Em 1981 deixou de circular por problemas financeiros, sendo relançado apenas em 1992.
Ao longo de sua história manteve uma linha editorial satírica e de orientação de esquerda, que lhe rendeu espaço cativo no mercado, embora nunca tenha liderado as vendas.
Em 2006, foi alvo de críticas de comunidades muçulmanas ao republicar as famosas (e controversas) charges de Maomé veiculadas meses antes pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten. Segundo preceitos do islã, que tem o profeta como figura sagrada, é proibida qualquer representação de sua imagem, considerada ofensa e pecado. O Jyllands-Posten foi além dessa provocação: uma das charges trazia Maomé como terrorista, com uma bomba no lugar do turbante.
Terror
Em 2011, a reprovação ao Charlie Hebdo transformou-se em fúria, quando o semanário "convidou" o profeta para ser "editor-chefe" de uma de suas edições, e publicou uma charge dele na capa. O material rendeu à publicação, naquele mesmo ano, um ataque a sua sede, com bomba incendiária, mas felizmente sem vítimas.
O atentado não arrefeceu a abordagem contundente e cáustica do veículo. Ao contrário, em 2012 a equipe voltou a usar Maomé em uma charge, empurrado numa cadeira de rodas por um judeu ortodoxo, sob a legenda de "Os Intocáveis" (em referência ao drama francês homônimo, que à época fazia sucesso) e a fala "não ria", dos personagens.
Desde o episódio, o editor-chefe do Charlie Hebdo, Stephane Charbonnier, conhecido como Charb - um dos mortos na ação da última quarta - era mantido sob proteção policial. Morreram ainda os cartunistas Jean Cabu, Georges Wolinski (considerado um dos mais importantes do mundo), Bernard Verlhac (Tignous) e Philippe Honoré; o economista e vice-diretor do semanário Bernard Maris e a colunista Elsa Cayat; Michel Renaud, fundador do festival "Rendez-vous de Carnet de Voyage", que visitava a redação; o revisor Mustapha Ourrad; e o policial Franck Brinsolaro, que fazia a segurança de Charb.
Antes de subirem à redação, os homens mataram Frédéric Boisseau, funcionário de outra empresa que naquele dia trabalhava no prédio do Charlie Hebdo. De volta à rua, fizeram a última vítima fatal, o policial Ahmed Marebet.
Limites
No dia do ataque, reações de apoio multiplicaram-se nas redes sociais e em veículos de várias partes do mundo, algumas com referências à desproporção da reação dos extremistas. Numa charge do cartunista australiano David Pope, um terrorista islâmico, segurando um fuzil, diz "Ele desenhou primeiro", em frente ao corpo morto de um desenhista.
Não há dúvidas sobre a natureza indefensável do crime, tampouco ênfase o suficiente para ressaltar seu caráter abjeto e bárbaro. Mobilização e pressão social e, em alguns casos, providências legais são caminhos para lidar com conteúdos considerados ofensivos ou difamatórios; matar, não.
Mas algumas falas parecem esquecer que charges, quadrinhos e ilustrações (assim como quaisquer outros conteúdos jornalísticos, artísticos ou publicitários, em diferentes linguagens) ultrapassam a esfera da opinião. São construções simbólicas produtoras de discurso, que contribuem para o sucesso ou fracasso de situações sociais.
Um breve resgate do histórico e da produção do Charlie Hebdo mostra que o semanário nunca teve um único alvo. Sua proposta sempre foi a de desafiar e provocar qualquer tipo de organização social com pretensões de instituição ou sagrado.
Nesse processo, por razões óbvias sobrava munição para o Estado, a política (e políticos) - em especial a ultradireita francesa, por seu caráter conservador agressivo- e as grandes religiões.
A despeito da abordagem que não raro beirava o obsceno (no sentido de pesado e propositalmente ofensivo), o Charlie não promovia humor às custas de negros e homossexuais, por exemplo - racismo e homofobia, aliás, eram chagas duramente combatidas pelo semanário.
Embora no currículo da publicação pesam momentos desnecessários (como a capa após a morte de Michael Jackson, na qual aparece o esqueleto do cantor pop, ao lado da legenda "finalmente branco"), dificilmente a fragilidade de determinado grupo social lhe servia de muleta. A linha era tênue e sempre desafiada - aspecto necessário ao humor. Mas na esfera da religião as fronteiras eram borradas.
Fonte:diariodonordeste.verdesmares.com.br
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